Marxismo e Religião: Água e óleo? Um papo com o professor de História e religioso Thiago Nascimento - Por Lula Vilar


Um dos assuntos que tem se tornado comum, em alguns campos da intelectualidade, tem sido a junção entre o marxismo e as religiões. 

Não por acaso, muitas visões de esquerdas (apoiadas nas teorias de Karl Marx) encontram respaldo dentro de algumas igrejas, apesar de estudos filosóficos apontarem para uma mistura entre água e óleo.

Eis que me interessei sobre o tema. O objetivo é conversar com pessoas que encontrem sentido nesta união e com as que não encontram. Confesso: estou no segundo grupo.  Pedi sugestões para alguns amigos para o contraponto e pretendo trazer em breve. Mas, agora publico a conversa que tive com o religioso Thiago Nascimento.

Nascimento possui graduação em História e mestrado em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas. Foi professor durante muitos anos em rede pública e privada. Atualmente, é técnico em Assuntos Educacionais da Universidade. Paralelo a isto, é pastor da Igreja Batista Plenitude há dois anos. Há uma história de conversão na vida de Nascimento que se deu em 2005.

Eis a conversa:

Na visão do senhor, e de muitos historiadores críticos, o marxismo não combina com religião. No entanto, o que mais enxergamos é esta corrente materialista se infiltrando nas Igrejas, independente se católicas ou protestantes. Por que, em seu entendimento, isto ocorre?

Veja só, dentro do cristianismo existem muitas vertentes e muitas leituras diferentes. A visão ortodoxa, que leva em conta o texto bíblico e o ensino apostólico desde o I século, antagoniza com o marxismo definitivamente. No entanto, dentre as diferentes leituras se encontram aquelas que se aproximam da interpretação marxista da história e da perspectiva da esquerda em geral. Os exemplos mais conhecidos são a Teologia da Libertação entre os católicos e a Teologia da Missão Integral entre os protestantes. Visões do evangelho que apresentam um Jesus que "escolheu os pobres", que está do lado dos excluídos, que prega algum tipo de luta social contra as injustiças ou que se insurge contra a ordem estabelecida. É claro que esta concepção não se sustenta com base nos textos do Novo testamento. Nenhum deles. Na verdade ela ignora alguns aspectos cruciais do ensino de Jesus. Para explicar a razão disto é preciso estudar a história, o nascimento de cada um destes movimentos (no caso a T.L. ou a T.M.I.) e o contextos político e social no qual foram gerados. Mas de forma geral afirmo que esta infiltração marxista dentro de alguns segmentos cristãos acontece pelo abandono da ortodoxia. O ensino da Bíblia e da doutrina cristã da maneira como é apresentada desde os primeiros discípulos de Jesus, com sua visão de mundo, concepção de homem e valores morais, não permite que o cristão tenha ideias socialistas, por exemplo. A apropriação política do evangelho, ou a esquerdização de Jesus só encontra lugar onde o ensino dos fundamentos bíblicos foi abandonado.

Completando a pergunta, como o senhor enxerga fenômenos como a Teologia da Libertação?

Especificamente falando da TL, eu diria que ela é fruto de uma leitura equivocada dos evangelhos. Surge em um certo período histórico e se difunde em regiões onde aquele pensamento encontra eco. Populações exploradas e fragilizadas, necessitadas de um discurso que encoraje a luta política e a subversão de uma ordem opressora, onde havia uma herança católica que foi explorada pela TL e pelos grupos políticos que fizeram uso dela. O final dos anos 60 foi uma época fértil para a expansão desse tipo de ideias e a América Latina foi o lugar ideal. A abertura proporcionada pelo Concílio Vaticano II, o contexto de lutas sociais da época, a Guerra do Vietnã, a Guerra fria e a situação específica do continente latino americano favoreceram leituras do cristianismo influenciadas pelo marxismo. Existe na TL a ideia falsa de que o evangelho faz a opção pelos pobres. A ideia de que a luta política ou a busca pela transformação social são formas de fazer a vontade de Deus e que a luta de classes foi apoiada por Jesus. Eles pegam textos isolados do contexto, passagens interpretadas com um fim específico para criar todo um ideário onde Jesus é um revolucionário que lutou contra as injustiças sociais e os poderosos da época, que se colocou ao lado dos pobres contra os ricos, etc. O foco do ensino deixa de ser a luta contra o pecado e a libertação espiritual para ser a "emancipação humana" do capital. Os fundamentos do evangelho são trocados. Esta análise serve também para a Teologia da Missão Integral e movimentos afins. Claro que existem diferenças entre eles, de temporalidade e mesmo na doutrina, mas as influências são as mesmas e a lógica do movimento é muito parecida.

Quais são os pontos cruciais que separam o marxismo da religião? Por que um cristão não pode, digamos assim, ser marxista? Ou pode?

Vou responder sob a ótica cristã. A base filosófica do marxismo é o materialismo dialético. Na filosofia materialista Deus não existe. Nós somos unicamente matéria e, embora exista algo como o pensamento ou as ideias, a matéria é anterior e possui a primazia na relação com a ideia. O homem é um ser historicamente construído. As ideias são reflexo da base material (as relações que os homens travam entre si no processo de produção de riqueza material da sociedade, ou seja, o trabalho), a religião, a moral, a filosofia e direito são criação do homem. Não há espaço para revelação divina ou para crer em um homem imagem e semelhança de Deus que seja obra prima da criação. O materialismo dialético é uma filosofia ateísta e não por acaso os grandes expoentes do marxismo são/fora ateus. Marx escreveu que a religião é o ópio do povo nos Manuscritos de Paris, de 1850. A cosmologia marxista é oposta à cristã. A concepção de homem é radicalmente diferente. Inclusive o marxismo não é só uma filosofia, ou um conjunto de ideias sobre economia e política. É uma forma de interpretar a realidade que se pretende ser completa. É uma ideologia que abrange todas as áreas do conhecimento e da ação humana. A adesão a ela precisa ser completa. Possui um modelo de sociedade a ser alcançado e uma concepção de História. Esta concepção é antagônica ao cristianismo. A moral cristã não faz sentido dentro da lógica do marxismo, a família é vista como criação do homem em um contexto de surgimento da propriedade privada; valores como santidade, pecado, ressurreição, justificação, não existem na ideologia socialista e não fazem sentido. A plataforma comunista dizia "fim da propriedade privada, do Estado e do casamento monogâmico". Entendendo cristão como aquele que acredita em Deus, em Jesus Cristo como filho de deus que veio a terra para redimir o homem do pecado e que crê na Bíblia como Palavra de deus inspirada e infalível, digo que o indivíduo pode ser cristão ou marxista, não as duas coisas. Não é porque são diferentes, mas porque são antagônicos. É claro que existe aquele cristão que não conhece tudo da Bíblia, ou que não conhece tudo no marxismo e não vê incompatibilidade. Mas se estudar e descobrir o que de fato está por trás das ideias, vai perceber que não dá para ser as duas coisas. Conheço muitos cristãos que se dizem de esquerda. Eles não sabem o que é o comunismo de fato, não conhecem as raízes do pensamento nem os desdobramentos da história.  Ou se conhecem são aqueles cristãos nominais que não tem um real compromisso com a Bíblia. É só dar uma olhada rápida em qualquer livro de História: a agenda da esquerda contém tudo o que a Bíblia condena. Cristãos e esquerdistas sempre estão em lados opostos nas barricadas. Todos os países onde o socialismo assumiu o poder perseguiram os cristãos.

Como cristão, quais os males que o marxismo traz para a sociedade na visão do senhor?

Como cristão eu diria que a primeira coisa é a perda de referencial. Sem Deus as coisas perdem sentido. Não existe padrão absoluto para moralidade em uma sociedade ateísta. O próprio ser humano perde valor. Os indivíduos enquanto subjetividade perdem valor. O cristianismo defende a liberdade. Defende a individualidade do ser humano, a capacidade de tomar decisões e assumir responsabilidades. No socialismo todo mundo é igualado mesmo no que é diferente, as pessoas são niveladas por baixo. A liberdade desaparece, o Estado controla os corações e mentes...Existe um prejuízo maior ainda do ponto de vista moral, a degradação da família, a destruição de valores tradicionais. Se Deus não existe o certo e o errado, o bom e o mau são relativos. O cara pode tomar atitudes altamente condenáveis segundo padrões cristãos, que são aceitas dentro da lógica do pensamento materialista, porque existe uma finalidade que se torna mais importante. Vemos isso no procedimento dos políticos da esquerda no Brasil e no mundo. Discursos demagógicos e mentirosos. Vemos a falta de ética, a corrupção, o uso da mentira e da difamação, o uso de estratégias totalmente imorais para manter o poder e ter controle. É claro que estes problemas citados não são exclusividade da esquerda. A questão é que quando um cristão é anti-ético, imoral ou corrupto ele está em discordância com o que acredita. Um cristão que faz isso é um hipócrita. O ensino cristão não aceita a mentira, o roubo, a corrupção, etc. Mas quando o esquerdista age assim ele não está sendo coerente, porque a natureza do discurso esquerdistas traz implicações morais que tornam aceitável o uso de certas estratégias e práticas. É por isso que os governos socialistas cometeram genocídios sistemáticos no século XX. Porque o indivíduo perde valor e o certo e o errado assumem nova configuração, dentro da lógica de manutenção do poder daqueles grupos. Por isso os socialistas falam em liberdade e igualdade, em fim das classes sociais e estabelecimento de uma sociedade justa, mas quando chegam ao poder instalam ditaduras, acabam com a liberdade, criam governos militaristas, perseguem seus inimigos, torturam e matam. A elite continua no poder, no caso a burocracia estatal formada pelo partido, e o povo continua amargando a miséria, e sem a possibilidade de ascensão ou mobilidade social que uma economia de mercado permite. Como eu tinha mencionado na resposta anterior, a ideologia marxista se pretende geral. Há uma concepção de homem e de mundo e um modelo de sociedade que se pretende construir. Os caras sabem como a família cristã é importante para o nosso modelo de sociedade, por isso tantos ataques à família. A família é a célula inicial da sociedade e esta é a razão da esquerda tentar criar novos modelos de família. Eles precisam acabar com a família cristã e estabelecer sua agenda moral para alcançar êxito em sua transformação da sociedade. Por isso a esquerda dá tanta ênfase à ideologia de gênero, casamento gay, liberação sexual, uso indiscriminado de drogas, aborto, relativismo moral. Faz parte da estratégia de criação de novos valores e destruição da sociedade cristã. Evidencia de novo nosso antagonismo.

Qual a importância da religião neste momento de turbulência política que estamos vivendo, uma vez que ele também é fruto desta mentalidade secularista na qual estamos inseridos?

Falando especificamente do evangelho, ele é "o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê" (Ro 1:16). A proposta de Jesus é um caminho de justiça, integridade, verdade, transparência, amor, humildade. Acredito que estes valores são muito úteis para a vida em sociedade e a convivência entre as pessoas. Inclusive a prática política que se fundamente em valores como estes é uma prática diferenciada, sobretudo honesta. A mensagem de Jesus transforma o indivíduo. Ela não impõe uma forma de pensar para uma coletividade, não pode ser forçada de cima pra baixo, mas entendida e aceita por cada sujeito. E cada sujeito transformado por esta mensagem, espiritualmente liberto das amarras do pecado, está apto a ser um agente de transformação, a abençoar as pessoas e a sociedade em geral. Os ensinamentos contidos no sermão da montanha sobre convivência, humildade, integridade, perdão, se fossem aplicados na sociedade criariam um mundo muito mais justo e agradável, para todos. É nisto que eu creio. E são estes valores que a visão de mundo marxista tenta destruir. É claro que não é só o marxismo que luta contra o padrão bíblico de família e os princípios morais cristãos. Outras correntes de pensamento ateístas, não necessariamente materialistas, combatem o cristianismo. Mesmo dentro do movimento liberal encontramos defensores da agenda moral da esquerda para a sociedade.  A mentalidade secularista anticlerical ou anticristã surge bem antes do marxismo. Marx viveu entre 1818 e 1883, e temos filósofos ateus bem antes disso. Por este motivo o cristão precisa saber em que crê e conhecer a fundo as doutrinas políticas que defende. Eu acredito que a concepção cristã de homem e de mundo é verdadeira, por isso creio que os princípios bíblicos para a sociedade, no que se refere à moral e à prática dos indivíduos, são bons para a sociedade. Então considero muito importante a defesa destes valores e entendo perfeitamente a luta da esquerda ou de certos grupos ditos progressistas para acabar com estes valores ou invertes os valores morais. É disto que trata por exemplo a estratégia gramsciana de construção da hegemonia.

As religiões, de forma geral, são vistas como um “ópio do povo” dentro de um Estado laicicista. São atacadas e é cobrado que a visão religiosa fique fora da política, como observamos nas discussões do Senado e Câmara de Deputados, além de outras casas legislativas. Como o senhor observa isto?

Pessoalmente sou totalmente a favor do Estado laico. Mas o que é Estado laico? Existe muita confusão quando se fala sobre isso. Estado laico é diferente de Estado ateu ou Estado laicista. Não é um Estado contra as religiões, ou que proíbe as manifestações religiosas. Muito pelo contrário. O Estado laico não tem uma religião oficial não se baseia em uma religião específica, mas protege todas as religiões e concede liberdade de culto, de expressão e de pensamento. A constituição brasileira estabelece liberdade religiosa e inclusive protege os lugares de culto. Os que enxergam a religião dessa forma negativa são em geral ateus que querem se ver livres das limitações que a religião estabelece. Ou que veem na moral cristã, por exemplo, um entrave ao seu plano de governo e seu modelo de sociedade. Acredito que o político deve entender que serve à toda a sociedade, não a uma pequeno grupo, mas isso não quer dizer que ele deve abrir mão daquilo que acredita. É preciso ter bom senso e equilíbrio. Nossa sociedade foi fundada sobre valores cristãos. Todo o pensamento ocidental foi largamente influenciado pela Bíblia. Mesmo os críticos das Escrituras acabam fazendo uso dos princípios dela, quando convém a eles. Acredito que quando o político age com justiça, ética, respeito, se baseando na verdade e buscando fazer o melhor na sua função, para servir à sociedade, ele está praticando os princípios cristãos. No governo atual, por exemplo, quando vemos discussões sobre o papel das igrejas e uma busca por afastar a religião da política o que se quer na verdade é que os valores cristãos sejam afastados. Estes grupos querem estabelecer a sua agenda moral e pra isso precisam calar os que defendem a família e a vida.

Com um cristão deve proceder diante do momento político? Até que ponto ele deve se envolver e como se envolver? É legítimo ele se candidatar?

No momento político atual acredito que o cristão deve orar muito. Orar pelo país, orar pelo povo...É preciso ter sempre equilíbrio, se informar, saber o que está acontecendo. As decisões precisam ser tomadas com o máximo de informações, pra serem acertadas, e dentro de nossos princípios. Como o cristão deve se posicionar? Se posicionar a favor de visões políticas que se harmonizem com nossa linha de pensamento. Fazer frente a ideologias nocivas à família e á sociedade. Sobre envolvimento, somos seres políticos. Todas as nossas ações tem implicações políticas (não falo de política partidária, falo de política no geral). Envolver-se em política é natural em um Estado democrático de direito. O limite deste envolvimento é o limite da ética. Se o crente se candidata ou não, é escolha dele. O cristão pode se candidatar, mas deve fazer isso enquanto indivíduo. A igreja de Jesus não foi chamada para lutar por poder político ou pra conquistar posições dentro do aparelho de Estado. Nossa luta é outra e em outra frente. Mas o indivíduo é livre pra proceder como quiser.





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