A pluralidade religiosa na sociedade contemporânea: Brasil e Canadá - Por José Tadeu Arantes


O modo como os fundamentalistas de diferentes religiões convive atualmente nos países ocidentais tem criado conflitos, muitas vezes violentos. 

O problema tornou-se comum e transversal a todas essas nações. Mas a forma como as sociedades nacionais resolvem a questão, ou pretendem resolver, varia bastante.

Um estudo colaborativo entre pesquisadores brasileiros e canadenses enfocou o tema nos respectivos países. A pesquisa, “Religious diversity in Brazil and Canada”, coordenada no Brasil por Paula Montero, da Universidade de São Paulo (USP), e no Canadá por Lori Beaman, da University of Ottawa, teve o apoio da FAPESP, no âmbito do acordo de cooperação com o Consorcio de Alberta, Laval, Dalhousie e Ottawa (Caldo).

“O Canadá tem sido referência mundial na construção de uma articulação entre as diferenças étnicas, culturais e religiosas que chamamos de ‘multiculturalismo’. Esse modelo foi repensado, criticado ou adotado em várias sociedades. Nossa ideia era entender as especificidades do pluralismo brasileiro e se o modo como a diversidade cultural foi contemplada pela Constituição de 1988, em termos de direito das minorias, dialogava ou não com a experiência canadense”, disse Montero, que é professora titular do Departamento de Antropologia da USP, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e coordenadora adjunta da FAPESP.

O modelo canadense consiste em conferir direitos explícitos a todas as minorias. Por exemplo, na província de Quebec, de colonização francesa, onde existe uma forte disputa linguística, todas as instituições estatais e muitas instituições privadas são bilíngues. 

Com atos simbólicos de forte impacto midiático, o atual primeiro-ministro, Justin Trudeau, projetou mundialmente a imagem do Canadá como um espaço de multiplicidade, respeito às diferenças e inclusão.

Mas, evidentemente, existem resistências ao multiculturalismo, que partem da sociedade e contam com um certo beneplácito do Estado. 

“Nossas parceiras canadenses estão estudando como uma discriminação não explícita e praticamente invisível acaba por marginalizar religiões minoritárias”, afirmou a pesquisadora.

Essa forma disfarçada de discriminação foi tratada pela coordenadora canadense Lori Beaman a partir do conceito de zoning (zoneamento). 

Por meio dessa abordagem foi possível perceber como as políticas de organização do espaço urbano, sem coibir explicitamente as expressões religiosas minoritárias, acabam por torná-las menos visíveis. No caso da religião muçulmana, por exemplo, impedindo que mesquitas se instalem em determinados bairros.

Ao contrário desse ocultamento sutil da diferença, o que vem ocorrendo no Brasil é uma explicitação cada vez maior. 

“É o caso das religiões evangélicas, que têm conquistado visibilidade crescente nas mais diversas esferas: no espaço urbano, na mídia, na política. O exemplo mais ostensivo é o Templo de Salomão, da Igreja Universal do Reino de Deus, que disputa com a Catedral da Sé a máxima visibilidade na paisagem paulistana”, apontou Montero.

Como enfatizou a pesquisadora, essa explicitação em larga escala das diferentes religiões é um fenômeno relativamente novo no Brasil. 

“No caso das igrejas evangélicas, remonta aos anos 1970. Antes disso, e ao longo de toda a primeira metade do século XX, o catolicismo era o modelo daquilo que se entendia por religião no país. Por ter sido durante muito tempo religião de Estado, o catolicismo se ‘naturalizou’ como expressão do valor moral da nacionalidade. Ser católico era, para a maioria dos brasileiros, uma decorrência, tida como ‘natural’, da condição de nascimento e do contexto familiar, e não uma escolha individual. Desse modo, o catolicismo era parte inerente da experiência cotidiana e da paisagem da cidade. As pessoas não faziam disso uma questão. Era ‘natural’, por exemplo, que a imagem do Cristo Redentor fosse o símbolo visual mais característico do Rio de Janeiro. Até muito recentemente, essa exibição pública de imagens religiosas não era tida como questionável”, explicou.

Pluralismo religioso

É sabido que, no passado, houve perseguições violentas contra práticas populares organizadas em cultos como o candomblé, a umbanda e o espiritismo, principalmente por parte da Igreja Católica e das autoridades médicas e policiais. Mas esse controle estatal não se reconhecia explicitamente como “discriminação” e pretendia se justificar em termos de combate aos “crimes contra a saúde e a ordem pública”.

“A novidade hoje é a experiência social e normativa do pluralismo religioso. A partir da Constituição de 1988, pode-se dizer que se inaugura um processo social e político de relativização do catolicismo e do dever de reconhecimento da coexistência necessária de várias religiões. Antes disso, as pessoas já transitavam com bastante naturalidade entre as diversas religiões sem que isso se colocasse para elas como um problema individual de “conversão” ou “escolha”. Dependendo de sua situação familiar ou pessoal, elas iam do espiritismo para a umbanda, da umbanda para o candomblé, e do candomblé de volta ao catolicismo, sem precisar se definir religiosamente. Agora, as fronteiras entre as religiões se tornaram objeto de disputa e consequentemente mais visíveis e rígidas. Essa reafirmação das fronteiras faz emergir o conflito aberto entre religiões, a disputa por legitimidade, por espaço, por visibilidade e por adesões”, comentou a pesquisadora.

A palavra “dessincretização”, que muitos dicionários ainda não registram, ganhou expressão nos estudos sobre religiões, em referência principalmente, mas não apenas, ao movimento protagonizado por lideranças do candomblé para recuperar sua autonomia frente ao catolicismo. 

A Constituição de 1988 legitimou o paradigma do pluralismo. E este passou a ser um valor político normativo. A afirmação identitária de grupos diferenciados é exatamente o oposto da “miscigenação” e do sincretismo, que constituíam o grande mito brasileiro, tanto na esfera político-social quanto religiosa.

“Essa afirmação identitária pressupõe a produção de contrastes e fronteiras; no processo das relações sociais, isso significa a configuração de um campo de relacionamentos mais contraditório e conflituoso. Outra novidade reside no fato de esses conflitos religiosos muitas vezes serem levados até as instâncias jurídicas. A sociedade de direitos, que começou a se organizar a partir da Constituição de 1988, passou a exigir do Judiciário um esforço de regulação do religioso. A noção de tolerância, que no passado fora formulada para pôr fim às guerras religiosas na Europa, voltou a ser requisitada diante de um contexto de conflito religioso”, analisou Montero.

A noção de intolerância passa a ser utilizada principalmente por parte das religiões de origem africana, que começam a sofrer agressões de pastores evangélicos que as acusam de “falsa religião” e de “fazerem parte com o demônio”. No esforço de construção de uma defesa jurídica capaz de tipificar como crime de intolerância religiosa essas agressões utilizou-se como instrumento o crime de racismo.

Outra novidade na cena religiosa contemporânea do Brasil, decorrente dos afluxos recentes de imigrantes do Oriente Médio e da África, mas também de uma política de conversões, é a maior visibilidade da religião muçulmana. 

Neste caso, há muito o que aprender com a experiência canadense, pois o islamismo, praticado por 3,2% da população, já é a terceira opção no ranking estatístico daquele país, depois do cristianismo (67,3%) e de um muito expressivo segmento populacional sem religião (23,9%).

“Conforme o modelo de parceria definido pelo acordo de cooperação, fui duas vezes ao Canadá, para ouvir o grupo canadense e expor o meu trabalho. E minha parceira veio duas vezes ao Brasil, para ouvir o meu grupo e expor o seu trabalho. A partir daí, formatamos um estudo maior, que está sendo conduzido agora no âmbito do projeto temático: “Religião, direito e secularismo: a reconfiguração do repertório cívico no Brasil contemporâneo”, com 20 pesquisadores e vigência até agosto de 2020”, finalizou Montero. 



 


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