Lamya, 18 anos. Escrava do estado islâmico durante 20 meses - Por Sofia Lorena


Simplesmente por pertencer à comunidade yazidi, ligada aos curdos, a jovem iraquiana Lamya Taha foi vendida e violada até pensar que não aguentaria mais. Mas sobreviveu. Para contar a sua história. 

Dizem que os yazidis são adoradores do diabo, mas eles sabem que o diabo são os outros. A religião deles é muito antiga, anterior a Cristo e a Maomé, provindo diretamente dos sistemas de crenças da Mesopotâmia. Mas desde que os muçulmanos existem, os yazidis vivem entre eles. 

Por professarem uma religião de sincretismos num mundo islâmico fundamentalista, os yazidis sempre foram perseguidos e hoje estão espalhados pelo mundo. Em 2010, sobravam uns 800 mil, a maioria no Iraque. Hoje, depois de Saddam Hussein e dos extremistas, ninguém sabe quantos são.

Estejam onde estiverem, os yazidis acreditam que o dia do julgamento final vai acontecer no templo de Lalish, a montanha do Curdistão iraquiano. É dali, dizem, que se separam os caminhos: para um lado, o inferno; na direção oposta, o paraíso. 

Em Lalish há uma serpente e é desta que os ignorantes falam quando os acusam de adorar o diabo. O que eles não sabem é que foi com esta serpente que Noé tapou o buraco da arca e, assim, a vida pôde continuar.

O pediatra Mirza Dinnay sabe bem o que é resgatar crianças atiradas ao inferno. Lamya Taha exibe as marcas do diabo no rosto, mas continua a adorar a vida e ainda quer ser professora. Tem 18 anos e a cara desfigurada pela bomba que explodiu quando fugiu de quase dois anos de cativeiro impensável. O impensável chama-se Isis (o autodenominado Estado Islâmico). A bomba tirou-lhe o olho direito e deixou-lhe o esquerdo com a visão 90% reduzida.

As piores marcas são as que não se veem. O pediatra Mirza sabe disso. Afinal, é ele quem cuida de Lamya e procura resgatá-la para uma nova vida. 

Conversão ou morte

“Sou uma das milhares de moças yazidis capturadas pelo ISIS (sigla em inglês para Estado Islâmico do Iraque). Eu e toda a minha família fomos capturados em Agosto de 2014 em Korcho, a nossa aldeia. Os combatentes chegaram e disseram: ‘têm três dias para se converter ao islão ou serem mortos’”, conta Lamya, com Mirza a fazer de intérprete.

Quando os combatentes chegaram, o terror estava apenas começando. “No fim desses três dias, obrigaram-nos a ir para a escola da aldeia. Separaram as mulheres e as crianças dos homens. Levaram os homens lá para fora e mataram-nos. Depois, transportaram-nos para outra zona e foi aí que nos dividiram, mulheres para um lado, moças para outro”, descreve. 

Na aldeia, diz Mirza, viviam 1900 pessoas, 400 eram homens, como o pai de Lamya que ela nunca mais viu; os outros eram mulheres e crianças. 

“As moças, como eu, fomos para Mossul (a segunda maior cidade do Iraque, no Norte do país, sob controle dos jihadistas). As mulheres mais jovens e as crianças pequenas foram levadas para Tal Afar (outra cidade). As mais velhas foram mortas”, conta a jovem. 

“Depois de uns dias, levaram-me, a mim e à minha irmã, para Raqqa (a cidade síria que os membros do Isis chamam de capital do seu autoproclamado 'califado'). Um combatente saudita nos levou e nos violou, as duas no mesmo dia, antes de nos devolver ao grupo”.

Vendida e comprada

Foi então que Lamya foi vendida e comprada pela primeira vez. Tinha 16 anos e pensou que não aguentaria. 

“Um dos emires, um saudita, comprou-me e levou-me. Torturou-me, espancou-me, violou-me e eu cortei os pulsos, tentei matar-me. Estive três dias no hospital e, logo a seguir, ele levou-me para Deir Ezzor, outra cidade da Síria. Tentei fugir e passei uns dias com uma família. Mas eles me denunciaram e fui capturada outra vez”, recorda Lamya, franzina e frágil, vestindo camiseta branca e trazendo um fio ao pescoço.

Por tentar fugir, foi punida com nova dose de espancamentos e violações. 

“Depois, quiseram levar-me para Caim, no Iraque, mas eu saltei do carro e fugi. Capturam-me num controlo do ISIS e voltei para Deir Ezzor. Enfiaram-me numa prisão, e violaram-me seguidamente sem me darem comida nem água. Entregaram-me a um outro combatente e fui escrava deste durante três meses. Este vendeu-me a um que era o responsável por fazer as bombas.  Além de me estuprar, ele me obrigava a construir explosivos. Passados outros três meses, consegui fugir e voltei a ser capturada”, conta, num só fôlego. 

“Levaram-me de volta para Mossul, para ser julgada num tribunal da shaaria (lei islâmica). Devia ser morta ou ser mutilada, ficando sem os pés, por ter fugido. Decidiram matar-me, mas veio outro saudita que perguntou se me podia comprar. Primeiro, espancaram-me até todo o meu corpo sangrar por todos os lados. Depois, deixaram que o saudita me levasse para o mercado de escravos”, lembra. 

“Fui comprada por um médico iraquiano que era muito mau para mim. Passei um ano com ele, ele comprava e vendia moças yazidis o tempo todo”.

A grande explosão

Lamya não estava sozinha e conseguiu convencer duas outras yazidis a fugir com ela. Determinada, entrou em contato com uns familiares afastados para lhe enviarem um contrabandista. 

“Consegui escapar com duas amigas, uma de 18 anos, outra de oito. Fugimos de noite, mas perto da fronteira com o Curdistão uma delas pisou uma bomba e houve uma grande explosão. Elas morreram e eu perdi o meu olho direito e fiquei com a cara assim, quase cega do olho esquerdo. Um contrabandista levou-me ao Curdistão”.

Além do pai, um irmão de Lamya foi assassinado. Duas irmãs já estão na Alemanha, onde Lamya chegou há um mês; como ela, foram resgatadas pela organização do pediatra Mirza. Outro irmão, com 12 anos, foi forçado a combater durante um ano nas fileiras do ISIS. “Conseguimos resgatá-lo e está no Curdistão. A mãe dela e outro irmão estão desaparecidos até agora”, diz Mirza. 

“O plano é reunir os sobreviventes da família na Alemanha”, explica o pediatra. Mas nos campos de deslocados no Norte do Iraque não faltam “outros casos de moças que precisam de cuidados médicos e psicológicos e de quem as acolha depois do trauma” do cativeiro. “As condições em que vivem no Iraque são terríveis”, diz o eurodeputado Josef Weidenholzer, que visitou os campos e sabe do que fala Mirza. O médico Mirza vive entre o Curdistão e a Alemanha, dedicado  a resgatar crianças daquele inferno.

No Iraque, lembra Mirza, “são raríssimos os profissionais da psicologia, e não existe uma infraestrutura para acolher este tipo de refugiado que carrega terríveis feridas escondidas. “Em todo o Curdistão, há vinte psiquiatras para atender milhões de pessoas. E há mais de seis mil crianças que passaram meses e anos em cativeiro”, descreve.

“Estas pessoas estão muito traumatizadas, vivem em campos de tendas sem qualquer ajuda, o apoio médico e psicológico é quase inexistente”, diz. “Há crianças de seis anos que ainda acordam às 6 horas da manhã para rezar com medo de serem mortas pelos homens do ISIS. Não perceberam que já não estão em cativeiro”.

Ainda em fuga

Na Grécia, conta o médico, há 4700 refugiados yazidis em diferentes campos. “Fugiram da discriminação que sofriam no seu país, mas estão em campos onde continuam a ser discriminados. Sabemos que 231 escaparam dos campos o mês passado porque os refugiados sírios muçulmanos queriam obrigá-los a fazer jejum durante o Ramadão. Houve uma rapariga que se suicidou há dias. Temos de tira-los de lá”.

Os yazidis e todos os refugiados que permanecem na Grécia estão também vulneráveis aos traficantes. São 15 mil ao todo, quase cinco mil são yazidis. E entre estes, há os 470 identificados.

Lamya fugiu em abril em direção ao Curdistão iraquiano. Na Alemanha, ela ainda não tem estatuto de refugiada. Foi levada ao país pela associação do pediatra Mirza. Tem um visto de curto prazo, três meses, para tratamento médico. Mas Mirza vai tentar mantê-la lá, impedir que regresse às tendas do Iraque, onde não tem nenhuma perspectiva de sobrevivência.

Ainda há 3 mil yazidis escravos do ISIS, lembra a jovem. “Gostaria que todos fossem resgatados”, diz Lamya. “A situação das mulheres e das crianças que conseguiram fugir é muito ruim. Espero que outros países as queiram acolher”.

Quem são os yazidis?

Os yazidis, membros da comunidade à qual pertence Lamya Taha, têm sido perseguidos ao longo dos milênios, vítimas de vários genocídios e do ódio, tanto de cristãos como de muçulmanos. Agora, ameaçados de extermínio pelo Estado Islâmico, começaram a treinar, no Curdistão, para pegar em armas. Dizem que estão “em busca de vingança” pelos familiares que perderam nos massacres dos últimos anos.

Povo da mesopotâmia em fuga perpétua, os yazidis são etnicamente curdos, mas distinguem-se pela religião que praticam. Monoteístas, pré-cristãos, misturam elementos de várias tradições, especialmente do zoroastrianismo, que foi culto majoritário na antiga Pérsia, mas também do islão e do cristianismo.

Segundo a religião yazidi, Deus colocou a terra sob a proteção de sete divindades (anjos). A principal, Melek Taus, o Anjo-Pavão, é também conhecida pelo nome Shaytan, o mesmo que o Alcorão dá a Satanás. Isto leva a que muitos muçulmanos, em particular os mais radicais, vejam os yazidis como “adoradores do diabo”.

Para agravar os desentendimentos com outras religiões da área em que vivem, os yazidis acreditam na reencarnação e não seguem nenhum livro sagrado. 

A esmagadora maioria dessa comunidade caracterizada pelas suas tradições orais, entre 200 a 600 mil, vive na planície de Nínive (a antiga capital da Babilônia), no norte do Iraque. Mas a diáspora não para de crescer. Estima-se que existam entre 20 a 50 mil na Alemanha, 10 a 20 mil na Síria e entre 70 a 110 mil na Armênia, na Geórgia e no Azerbaijão.

O monte Sinjar tem-lhes servido de refúgio, mas muitos já não querem voltar: “Não sei, não sei se algum dia poderemos voltar. Já não queremos voltar para o Sinjar. Se as coisas continuarem como estão agora, não queremos voltar. Se voltássemos hoje, estaríamos todos mortos amanhã”, explica um refugiado que conseguiu fugir ao cerco dos extremistas do Estado Islâmico.

O massacre de yazidis está também servindo de justificação moral para o Ocidente armar os curdos pechmerga, os únicos que, no terreno, parecem capazes de poder travar o avanço do Estado Islâmico que já declarou um califado numa vasta região que abrange o norte do Iraque e o leste da Síria.

Os yazidis, hoje, só pedem uma coisa: “salvem-nos” do Estado Islâmico.





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